Toque de Fel
Os últimos raios de sol debatiam-se no horizonte, a luz pálida soava a rebate para a fauna diurna; era chegada a hora do recolher, o pôr-se a salvo dos predadores. Nesse ato rotineiro surge um grito muito ténue que desperta a atenção do pequeno Elias. Brincava nos arredores da sua casa aos polícias e ladrões, na verdade, havia apenas um ladrão que lhe roubava os prisioneiros da sua cela_o vento_ e o polícia era apenas um, também_ele próprio. Os prisioneiros, esses, eram às centenas, centenas de folhas de carvalho que teimavam em escapulir-se da cadeia, habilmente demarcada por quatro paus.
Ciente da punição, caso quebrasse a promessa de manter-se afastado da estrada, ainda pensou duas vezes se devia ir, mas a curiosidade falou mais alto e, guiado por um sexto sentido apressou o passo em busca dos gemidos, antes que a mãe notasse a sua ausência. As corridas entre condutores de meia-tigela, ao despique, começavam a ser habituais... Desejou que o carro que passara há instantes a derreter alcatrão nada tivesse a ver com aquelas súplicas e concentrou todos os seus sentidos no pedido de socorro que soava cada vez mais perto. Mais umas dezenas de metros e as suas suspeitas confirmaram-se: um pobre gatinho a contorcer-se de infelicidade. Precipitou-se a oferecer-lhe colo e tentou consolá-lo com festinhas enquanto procurava pela mãe ou pelo resto da ninhada do bichano. Nada, nem ninguém por perto, para reclamar o seu achado. Deixá-lo ali, condenado à sua própria sorte, era o mesmo que convidá-lo a fazer parte do asfalto, mais tarde ou mais cedo. Seria desumano tal coisa, ainda que, a ousadia de levar um animal para casa resultasse num sermão descomunal, igualmente desumano. Só havia uma atitude a tomar: entrar de fininho e acomodar o novo hóspede no único sítio possível_ o sótão. Para um pirralho de quatro anos até que era um génio... às vezes!
Sabia de cor e salteado o discurso “antibichos de estimação”, especialmente criado para os gatos. E na lista negra, sobre essas bolinhas de pêlo fofinhas, recaíam as mais descabidas blasfémias, tais como: desordeiros, daqueles desordeiros que não permitem tapetes ou passadeiras no lugar; arruaceiros, arruaceiros que vandalizam bibelôs, cortinados, sofás e roupas, esta última quanto mais de cerimónia for, mais apetecível se torna, e a infâmia das infâmias: estúpidos, estúpidos ao ponto de se atirarem contra o próprio reflexo ou simples sombras. Por momentos, quase que se visualizava o Diabo da Tasmânia!
O plano correu de feição uns míseros dias. Os pelos na roupa, os ataques ao frigorífico e os longos períodos de silêncio sem explicação, não passaram despercebidos no radar materno. Quando ouviu um estridente “ Elias Miguel”, já sabia! Era chegada a hora de pôr a sua carinha de carneirinho mal morto em ação. De semblante cabisbaixo e rabo a roçar na parede lá se arrastou escadas acima até ao local do crime.
_ Desculpa_ proferiu em voz baixa, a ocasião exigia um tom de arrependimento avassalador e uma carrada de lágrimas de crocodilo_ encontrei-o perdido, muito aflito e não tive coragem de o deixar assim, abandonado_ prosseguiu aos soluços. Era imperativo que o furacão passasse de nível cinco para nível um, claro que, uma mãozinha (ou patinha) do aliado também dava jeito, mas estava muito ocupado a perseguir sabe-se lá o quê. Os dados estavam lançados, havia que aparar agora os golpes do adversário. Prestes a entrar em modo “entra a cem, sai a duzentos” depara-se com uma conversa estranhamente civilizada:
_ Um animal, por mais fofo e querido que seja, requer muita responsabilidade... estarás à altura desse cargo? Tens de lhe dar um nome, levá-lo ao veterinário, vais pagar a fatura para sentires o peso da mentira, assim, à medida que o teu mealheiro for ficando mais pobre lembrar-te-ás do motivo. Ouvirás atentamente as instruções e segui-las-ás à risca, respeitando as regras de alimentação e de higiene conforme o recomendado. Outra coisa: tudo o que nasce morre, imaginas-te capaz de lidar com a perda? É muito pequenino, pode nem sobreviver, já pensaste nisso? Além disso, vai crescer. Hoje é um punhado de gato, amanhã será um tigre. Ainda lhe acharás piada? Não se trata de um brinquedo descartável. Pensa bem, ainda queres esse novelo de pulgas?
Que ofensa, referir-se assim com tanto desdém ao seu novo amigo!_ Luke, chama-se Luke, como o Lucky Luke, vês o lenço ao pescoço? E sim, farei tudo o que for preciso por ele.
Nesse mesmo dia, ao jantar, a mãe expôs o sucedido ao pai. Este mostrou-se orgulhoso do seu pequenote, apesar de repetir a repreensão matriarcal. Quis conhecer o novo membro da família que, mesmo a cumprir quarentena, tal era a quantidade de parasitas no pêlo, conquistou logo um acérrimo defensor. A mãe, ainda que não o admitisse, ficou igualmente derretida com aquele ser que cabia na concha formada pelas suas mãos. Não o trataria pelo nome, chamaria somente Gato, o nome comum para uma de muitas espécies de felídeos. O espaço que lhe fora destinado durante o isolamento, no sótão, abrigava montes de tralha prestes a ser descoberta pelo miúdo. Ao passarem ali a maior parte do tempo, perdiam-se em longas viagens no imaginário mundo pirata. O velho baú de madeira albergava uma quantidade infinita de preciosidades. Sem que ninguém o pudesse prever ou evitar, Elias descobre a chave de acesso à caixa de Pandora. Na companhia do seu amiguinho começa a ter visões estranhas que, de alguma forma, lhe são familiares. Ao tocar numa coleira feita pela mãe, quando tinha pouco mais do que a sua idade, percebe a sua relutância em criar laços afetivos com animais. Tivera igualmente um gatinho, a quem se destinava a coleira feita na aula de trabalhos manuais. Um companheiro de todas as horas e que não chegou a usá-la. A violência atroz das imagens impediram-no de largar a faixa de couro entrelaçado, sendo obrigado a ver o fim trágico do animal, chegando mesmo a sentir um cheiro intenso a queimado. Pior, viu e reconheceu o rosto do perpetrador. Com o intuito de consolar a mãe faz-lhe uma descrição pormenorizada sobre o que acabara de ver.
O choque de reviver novamente uma parte do seu passado, que desejava enterrado para sempre, não excede a surpresa de ter um filho com dotes paranormais. Ela, melhor do que ninguém, sabia o preço a pagar por se ser diferente. Como reagir nesta situação? Deveria desencorajá-lo, entrar em negação, consultar médicos, desvalorizar e, quem sabe, com o tempo a coisa caía no esquecimento? Optar por dar tempo ao tempo e ir tentando perceber o que despoletava aqueles surtos de psicometria teria que bastar, por enquanto. Porque um mal nunca vem só, vê-se desamparada, sem a sua pedra basilar. O que se designava bronquite mal curada galopou à velocidade da luz, empurrando o marido para um diagnóstico cruel. Desde sempre encorajou o seu menino a confiar nos pais e a não ter segredos, por isso, fazia-lhe doer o coração ter de lhe pedir que abrisse uma exceção, só desta vez, para não comprometer a recuperação. E ele prometeu. Prometer-lhe-ia o mundo se lho pedisse, só queria que o pai ficasse bom. Que largasse a cama do hospital e voltasse para casa. Que lhe tirasse as rodas de apoio da bicicleta, que acabasse de construir a casa na árvore, seguindo o projecto toscamente desenhado pelas mãos do seu artista. Para o papá, aquilo era um verdadeiro Picasso, dali sairia uma verdadeira mansão. Já tinham colocado a escada para trepar e a plataforma que serviria de base. Depois vinham as paredes, o telhado, um ninheiro para os passarinhos e, claro, a mobília! Tanta coisa para fazer! Ambos acreditavam serem donos do tempo. Mas o tempo é matreiro, não respeita nada, nem ninguém. Não devia ser assim. Houve um “até amanhã, campeão” e o amanhã não chegou. Em vez disso, veio um buraco na terra, fundo e feio, gente desconhecida a querer cumprimentá-lo de todas as maneiras, a mamã inconsolável e o choro do sino da igreja. Inesquecível aquele som. Se os anjos choram deve ser assim, uma melodia nostálgica.
A mala das ferramentas permanecia na garagem, imóvel e inútil. Decidiram deixar tudo como estava. Ainda dava para sentir o perfume dele pela casa. A imagem do seu rosto, com gotas de suor a deslizar pela barba, surgia a cada passo. A mamã dizia que não havia coisa mais bem feita do que um homem com a barba por fazer e trocavam olhares atrevidos... Todos os dias, sem desculpas, dorido ou não, tinham o momento Pai e Filho: coisas para homens, a mãe ficava de fora, já tivera esse privilégio o dia todo. Era rebolar na relva, apanhar flores para a “dona da casa”, descobrir tocas de grilos e gritar como autênticas senhoras, quando saíam de lá aranhas. Outras vezes, quando estava muito cansado, subiam para a plataforma na árvore e ficavam simplesmente a ver os carros a passar. Como pôde esquecer-se da sua habilidade para ver imagens através dos objetos? Tudo o que existia em casa tinha uma história para contar. Correu para a garagem em busca da mala de ferramentas. Divertiram-se muito a dar-lhes uso. Abriu-a ansioso. A folha de papel com o desenho daquela que seria a casa de sonho, ligeiramente amarrotada, ao lado dos pregos e do martelo. No compartimento de baixo: vários tipos de alicates, uma chave de fendas, desandadores, parafusos, roscas e outras miudezas para pequenas bricolages, tudo muito bem acondicionado. Curiosamente, não “via” nada. Mexia e remexia em tudo e, nem uma imagem. Quisera o destino que voltasse a ser um miúdo normal?
Desapontado com a aparente perda da sua quimera agarrou a folha de papel para comparar o desenho com a obra inacabada. Umas manchas de caneta denunciaram o verdadeiro projeto da estrutura, na parte de trás da folha; linhas muito direitinhas e uns números que deviam ser as medidas, tudo desenhado cuidadosamente ao pormenor. Até o ninheiro para os passarinhos já tinha sítio marcado. Aconchegou o papel ao peito e elevou os olhos ao céu (a mamã disse que o papá estaria sempre, lá em cima, a olhar por eles) e prometeu, um dia, acabar a “Mansão”. Mais do que saber do passado interessava-lhe reviver o que já não podia voltar a ser vivido.Pouco importava os sarilhos inerentes. Não queria apagar o papá da sua mente, ele ficaria muito triste. O tempo contava-se agora devagar; não havia pressa para chegar ao dia das bruxas, ao Natal ou a qualquer outro dia festivo. Aliás, pensar na possibilidade do dia seguinte existir era como alimentar brasas incandescentes no coração. Como continuar sem o pedaço que lhe foi arrancado? Nunca foram muito de ir à igreja, mas agora, mandavam-se rezar umas missas pelo papá. Estas, certamente, seriam mais apreciadas que as lágrimas. Ou, pelo menos, gostavam de acreditar que assim era. Quando tudo desaba procura-se conforto na fé, no invisível. A crença, que foi transmitida de geração em geração e perdendo o fulgor com o passar do tempo, ganhou um novo alento. Não tardou a inscrição na catequese e os encontros semanais com a dona Amélia. Estava a ficar um homenzinho. Havia que gerir muito bem o tempo livre; isto de ser nomeado homem da casa era uma carga de trabalhos. Escola, trabalhos de casa, um gato para cuidar, ajudar nas tarefas domésticas, catequese e missa ao sábado, missa novamente ao domingo, uma canseira daquelas! Por vezes, nem ao fim de semana podia parar para respirar; não bastavam os compromissos semanais e ainda levava com as viagens alucinantes para expor os quadros da mamã, aqui e ali. Enfim, a rotina atribulada do comum dos mortais dava ares da sua graça e, com ela, o tempo de ser criança esfumava-se no constante tique- taque do relógio.
Já tinham passado quatro anos. Era finalista do quarto ano e mandava a tradição que se fizesse uma festa para comemorar a primeira de muitas conquistas. A única oportunidade de muitos meninos experimentarem a sensação de envergar capa e cartola como os universitários. Um bico- de- obra para os pais que tinham a árdua tarefa de organizar a festa. Os finalistas pouco ajudavam, tinham os seus próprios números para ensaiar. A hora de honrar os seus mestres aproximava-se, imperavam os nervos e a tristeza da despedida anunciada. Quatro anos que passaram a voar e, no entanto, quase uma vida. Tantas lembranças… A ternura da dona Luísa a chamar para o almoço, a aflição dela quando aparecia alguém com o joelho esfolado.
_ Oh, meu filho, o que é que foste arranjar?! _dizia docemente, soprando beijos mágicos que faziam a ferida parar de doer. Os chazinhos da dona Maria para curar as “viroses” típicas das segundas- feiras; birras fingidas por deixar a saia da mãe. E sabia tão bem, aquele chá quentinho acompanhado de um afago na cabeça! Milagrosas, também, as mãos do professor João que domava os piores “terroristas” da turma com a sua música. Dizia que a rebeldia era a falta de amor a gritar. Pegava nos mais carentes, que ansiavam por um bocadinho de atenção, e sentava-os ao seu lado a tocar piano. Mágico! Por momentos, a felicidade imperava, esqueciam as bebedeiras do pai, as discussões e as dificuldades económicas lá de casa. Sentiam-se amados e especiais. Muito aprenderam com as professoras, valores como a bondade, a partilha, a tolerância. Transmitiam a mensagem dando o exemplo. Quantas vezes aqueceram uma sopa no micro-ondas e ficaram até altas horas da noite a trabalhar, para garantir que nenhum aluno desfilasse sem fato de carnaval, ou não recebesse (em alguns casos) aquilo que seria o único presente de natal. Marcante, também, aquela vez em que deixaram a sala de aulas para levar algumas flores do jardim da escola à santinha perto da escola, clamar proteção divina para o coleguinha que fora atropelado e o postal coletivo de rápidas melhoras que seguiu pelos correios. Para não falar do companheirismo entre docentes. As brincadeiras que organizavam para desejar um feliz aniversário a um colega ou, simplesmente, animá-lo numa fase menos boa da vida. Um exemplo de convivência sã, transpirando respeito e estima uns pelos outros. Por tudo isto e muito mais, o dia da festinha de final de ano exigia que todos os detalhes fossem pensados ao pormenor.
Elias estava longe de imaginar o que estava prestes a vivenciar. No dia que antecedeu a festa, enquanto a equipa responsável pelo banquete organizava o espaço e ultimava as decorações, Elias entretinha-se a ver a exposição de fotografias, resultado de muitas atividades e aventuras vividas por ele e pelos seus colegas, mas não só. Uma parte destinava-se a um passado mais remoto. Por ali passaram pais, tios, irmãos… Reconhecê-los em ponto pequeno, desdentados e trajados à camone era algo complicado, porém muito divertido. Tentava decifrar o rosto da mãe num universo de perfeitos anónimos até que, um arrepio lhe percorre a espinha. Sentiu os cabelos da nuca eriçarem-se. Algo nefasto pairava no ar e não percebia o motivo. Tratar-se-ia de um aviso, de uma ameaça ou apenas o stress a manipular-lhe a mente? Respirou fundo, contou até dez, de olhos fechados. Nada! O peso nos ombros persistia e o mal- estar ia alastrando gradualmente, em direção ao peito.
_Elias?_ chamou a mãe_ Estás bem? Estás pálido.
_Ainda falta muito para irmos? Já passa da minha hora!_ alertou o petiz.
_ Tens razão, deixa-me só confirmar se temos carvão que chegue. Podes vir comigo, se quiseres.
Nunca tinha entrado nas arrecadações, nem fazia ideia do que guardariam ali, naquele espaço bafiento e escuro. Não faltavam teias de aranha a adornar as paredes e bichos- de- conta em fuga, atordoados com a súbita claridade da lâmpada. Refugiavam-se no meio da lenha, devidamente empilhada e por entre alguns sacos cheios de pinhas, os sobejos do inverno passado, encostados a outro canto. Na outra ponta da divisão uma estante repleta de objetos, quadros e trabalhos deixados pelos ex-alunos.
Ao lado da estante, encontrava-se uma carteira em bom estado mas, de certo modo, antiga. Já havia muitos anos que aquele modelo deixara de ser usado nas salas de aula. Talvez tivesse ficado por ali para, um dia, fazer parte de um museu ou algo do género. Para Elias, porém, o motivo seria outro. Indiferente aos apelos da mãe para sair após ter conferido a quantidade de carvão e preparar-se para fechar a porta, Elias passa os dedos no tampo da mesa formando sulcos de uma ponta à outra, tal era a quantidade de pó ali depositado, ignorando o estado em que ficarão as suas mãos e a roupa, sabendo que aquele objeto obsoleto era a causa do seu mal-estar.
Senta-se, só assim consegue ver melhor, gosta de ver com o tato como qualquer criança, passa as mãos por baixo do tampo da mesa: pastilhas elásticas! Esboça um pequeno sorriso, «uma outra geração, o mesmo vício», recorda. Experimenta a cavidade para as canetas e escorrega o rabo de um lado para o outro, imaginando-se sozinho, sem colega de carteira com quem dividir o espaço numa aula qualquer. Foi isso. Foi esse mero ato, quase involuntário, que lhe dissipou a névoa que o perseguia. Levantou-se rapidamente, com a sensação de ter sido açoitado selvaticamente, incrédulo perante tal perceção, guardou na mente aquelas imagens perturbadoras que surgiram em cascata como se estivesse no cinema a ver um filme de terror.
Aquilo terá que ter um propósito. Sim, certamente tem um propósito, mas qual? O que é suposto uma criança de dez anos fazer em relação ao que acabara de ver? Considerá-lo-iam louco se, porventura, se atrevesse a denunciar a sua descoberta. No entanto, um pacto de silêncio seria igualmente devastador. «Deixa para amanhã o que não queres fazer hoje», diria o papá. Não fosse essa expressão, ele seria a prova de que a perfeição existia mesmo, refilava a mamã inúmeras vezes, na sua ânsia de ter tudo sob controlo. Céus, como a irritavam os sucessivos adiamentos de tarefas! No entanto, não seria esse “defeito” que lhe conferia a perfeição aos olhos deste seu filho? E o argumento? Quem se atrevia a rebatê-lo? Para quê cortar a relva, logo agora, se o que estava a apetecer eram duas partidinhas de futebol? E que jeito faziam aqueles tufos enormes para amortecer as quedas! Faria diferença aqueles centímetros a mais, caso fosse o seu último dia de vida? Não seria uma escolha unânime, por essa ordem de ideias? Não seria tudo muito mais fácil se seguissem esse critério mais amiúde? Claro que sim, o papá era um poço de sabedoria! Porém, por mais aliciante que fosse a ideia, desta vez, não ajudava muito na resolução do problema, pensava o miúdo, incapaz de decifrar uma escapatória que lhe amenizasse a consciência. O terceiro chamamento da mãe, a chave na porta, os nervos a faiscar com tanta demora e, a carteira ali, num apelo sem cessar.
_ Só mais uns minutos_ implorou.
_Cinco e nem mais um segundo_ retornou, já com os olhos esbugalhados.
Nunca mais ouviu relatos de visões, a priori, o seu desabafo estava seguro.
Decidira colocar por escrito o que, por tantos anos, lhe corrompeu a alma. Tinha de o fazer para poder prosseguir. Não teria outra oportunidade, com as escolas a encerrar, era uma questão de tempo até esta fechar também. Acabaria tudo no lixo, juntamente com a sua confissão. Nunca ninguém saberia, pois, por norma, só as auxiliares é que teriam acesso às arrecadações. À sua maneira, dava o assunto por terminado.
O miúdo suspirou de alívio com a conquista de mais uns minutinhos de sossego. Sabe que não obterá mais que isso. A imagem de uma menina surge-lhe alternadamente; ora mulher adulta, ora menina inocente. Ora vê os seus sonhos, ora sente um coração cravejado de espinhos, ora admira a forma como se aplica a colorir as páginas do seu caderno, ora… Quem diria? Ela esteve ali! Ajoelha-se para espreitar a carteira por baixo do assento, quase impercetível, encontra um sobrescrito envolto numa fita adesiva de cor castanha. Tentara, à sua maneira, livrar-se dos espinhos que foram crescendo em torno do seu coração. Daí as imagens: ora desenhos no caderno, ora desabafos no papel; a fúria das palavras que fazia as suas mãos tremerem. Era a peça do puzzle que faltava. Elias mal consegue conter a admiração que sente por aquela ex-aluna. Ambos partilham métodos de defesa muito similares: o silêncio, a paciência e os reflexos defensivos em prol da sanidade mental. E percebe, percebe a necessidade de fazer tudo ao seu alcance para que os espinhos deem lugar a sentimentos coloridos, sentimentos de uma leveza indescritível. Ela merece-os. Merece saber que há alguém que se importa com a sua mágoa e se sente repugnado face à impunidade de tais atos. Há alguém que se sente no dever de denunciar e evitar acontecimentos destes no futuro e, com alguma sorte, talvez a sua alma sinta que foi feita justiça. Despacha-se a apagar a luz e a fechar a porta. O dia seguinte promete… Já sabe o que fazer com a recém-descoberta, sem correr o risco de se expor.
Chegado o momento da entrega dos diplomas, Elias pede para falar. Dirige-se ao palco, muito seguro de si e, diante do microfone, começa a ler a carta que achou escondida na velha carteira:
“Lembras-te de mim?
Já lá vão alguns anos e, ainda assim, recordo-me como se fosse hoje. Chegavas com aquele ar quixotesco, tipo Steven Seagal (desculpa, Stevie!).”
A plateia, que desconhecia o teor da intervenção, desfez-se em gargalhadas.
“ «Não, não bate nas raparigas» _ garantiram-me com convicção. Foi o suficiente para sossegar o meu coraçãozinho de pardal, preso numa armadilha impiedosa. Acreditei que tinha à minha frente um novo mestre; alguém digno de confiança, coisa que já vinha sendo habitual no meu percurso escolar…”
Fez uma pausa para encarar a multidão. Observou os rostos pasmados, agora mais sérios, tentando perscrutar um objetivo naquela missiva e continuou calmamente:
“Longe de mim imaginar-me personagem principal num enredo no mínimo insólito no que diz respeito à arte de lecionar. Sim, lecionar é uma arte. Infelizmente, não é para todos.
Quiseste saber porque me ri, quando mandaste a colega, que estava sentada nas últimas carteiras, mudar-se para a que estava mais próxima de ti. Confesso que teria ficado na inocência, não fosse o comentário elucidativo do meu companheiro. Apercebeste-te e quiseste chegar-lhe através de mim. Mas lealdade, meu caro, não se compra com uma caixa de sortido pelo Natal. Ou se tem, ou não se tem. Não me pareceu correto crucificá-lo por causa da tua mente perversa. É que, naquele tempo, já se usavam saias do tamanho de cintos; um oásis para os teus olhos. Como não cedi, ordenaste que fosse ao quadro escrever que era tolinha, frase, essa, que seria acrescentada, por todos, ao sumário daquele dia.
Se pretendias atingir-me, falhaste redondamente. Tarados, como tu, como ao pequeno-almoço, desde o dia em que nasci. Apanhei a primeira sova com quinze dias de idade portanto, o que fizeste nem deu para provocar cócegas na minha armadura de titânio. Mas deu para rir: uma frase tão simples, colocada no quadro não fossem os ignorantes escrever com erros!
Ahahahah, essa foi boa! Olha eu a rebolar no chão de tanto rir!
Para terminar, como cereja no topo do bolo, exigiste o sumário assinado pelo encarregado de educação. Aqui sim, foste um tipo cheio de sorte! Calhou-te um, cuja única função (útil), se ficou pela doação de esperma. Depois de ler e assinar não fez qualquer pergunta ou comentário, o que para ti, deve ter sido um alívio; em circunstâncias normais, não te ia chegar o salário para aspirinas, Hirudoid e um par de óculos escuros.
Deves ter sacado o diploma de psiquiatra de dentro da mesma embalagem de detergente onde arranjaste o de professor. Não me ocorre outra explicação. Não foste tu quem pegou num texto meu e o foi ler às outras turmas? Digo-te desde já: uma estratégia pedagógica surpreendente, vinda de alguém que se entretinha a discutir o sexo dos anjos e sei lá mais o quê, enquanto passava a lição na televisão, muitas vezes colocada por nós, para que não fosses incomodado.
Esqueceste-te que os tolinhos também crescem. E só para veres como sou grande nem vou mencionar o teu nome; fica entre nós (ao preço que está o Listerine não querias mais nada, não?).”
Fez uma pausa, o silêncio imperava mais do que julgava ser possível. O único som audível, o silêncio. Ciente que todos os olhos e ouvidos aguardam por um desfecho prossegue, sem mais demoras:
“Se não passasses de uma nódoa, naquela que é a mais bela profissão do mundo, não terias subestimado o poder de uma caneta nas minhas mãos. Há quem opte por outras munições... Eu gosto desta: requintada e igualmente letal.
Tentei muito, sabes? Só Deus sabe quanto!... Mantive as folhas com o sumário e o texto que leste, guardadas estes anos todos. Acabei por queimá-las, esperando que o veneno que semeaste ficasse reduzido a cinzas, e que o camião do lixo o levasse para bem longe. Não resultou. Continuou aquele objeto estranho atravessado na garganta. Isso faz-me mal. Muito mal! O sangue ferve e começa a circular em sentido contrário. Se uma gota caísse no quintal da vizinha exterminava-lhe as ervas daninhas todas e mais nada vingaria ali, durante uns cem anos. Não gosto de me sentir assim. Por isso, devolvo-te as pérolas que criaste. Faz o que quiseres com elas. Quando morrer, quero ter uma expressão serena, típica de quem repousa em paz. Não posso, de forma nenhuma, deixar assuntos pendentes. Era só o que me faltava: os meus amigos, ensopados em baba e ranho, aguardando a minha chegada para o velório e o meu cadáver retido numa mesa de autópsias, exposto a jovens aspirantes a médicos, estupefactos com uma úlcera gástrica, nunca antes vista na história da medicina! Não, não posso correr esse risco!
Escusas de esfregar as mãos de contentamento porque, como disse, o que me fizeste não causou qualquer dano. Danos irreparáveis causaste ao meu colega! Esperaste pacientemente, como o leão espera pela sua presa. Depois, atacaste impiedoso. Bastou-lhe faltar às aulas para ir nadar com uns amigos. Na primeira oportunidade, mandaste sair a turma da sala para ficares a sós com ele.Não me atrevi a espreitar pela janela. Diz, quem viu, que até a carteira andava aos tombos. Lembras-te dessas carteiras, banco e mesa tudo apegado? Ainda pesam um bocadinho, não?
Sentiste-te muito homem por espancar um “franguinho”?
Começas a perceber porque te trato por tu, espero. Um Professor ter-lhe-ia marcado falta e conversado sobre o assunto; ter-lhe-ia descoberto um dom, um diamante em bruto e trabalhado essa pedra preciosa.
Preferiste ser o carrasco. Feliz com a obra que criaste? Podes admirá-la no estabelecimento prisional. Devias ir visitá-lo. A sério, nem que saias de lá com um andar novo, não faz mal. Quem sabe, dar-lhe folga um dia destes e fazer de Marilyn Monroe para o Hércules, do segundo piso. Umas feriazinhas sabem sempre bem. O que achas da ideia? Não?! Preferes algo menos... Caliente?! Também se arranja... Podes fazê-lo à noite, enquanto o sono não chega.
Fecha os olhos e imagina uma mãe, uma senhora do mais humilde e trabalhadora que há; imagina uma casinha, uma casinha muito modesta, mas limpinha e asseada. Agora, imagina essa senhora com um lugar vazio à mesa, dia após dia, ano após ano. Imagina o batimento cardíaco, sempre que o telefone toca… Consegues visualizar? Agora, repara no verde dos seus olhos. Porque têm sempre tanta humidade? O que é que te dizem? Por quem é que ela tanto reza? Onde vai buscar forças para continuar a fazê-lo?
Comovido? Se pensas, algum dia, falar com Deus, não o faças! Não sem antes falar com aquele menino. Aquele que tinha um olho castanho e outro verde. É o que lhe resta, desde então. A carcaça foi consumida pela droga, tem uma ou outra tatuagem, feita sabe-se lá em que condições para matar o tempo; um teste à sensibilidade, talvez. Mas creio que a vida se encarregou de ti, a julgar pelos últimos rumores que me chegaram aos ouvidos. Espero, contudo, que gozes de perfeita lucidez uma vida longa a remoer sobre o teu espólio. Se, em tão pouco tempo conseguiste tanto, nem quero imaginar o resto!
Diz-me… ainda te lembras de mim?!”
Encarou a multidão; uma geração de rostos envelhecidos, perfeitos anónimos, muitos deles, claramente sentindo parte daqueles desabafos como seus. Sem grandes explicações dirigiu-se apenas aos colegas:
_ Amigos, na hora de escolher uma profissão lembremo-nos somente disto: podemos ser deuses ou carrascos, mas tudo tem um retorno.
Na plateia, o jornalista que registava o momento, abeirou-se de Elias e mostrou-se interessado em divulgar o conteúdo da missiva. A ideia foi acolhida com satisfação. A reportagem tornou-se viral e durante algum tempo o miúdo vibrou de orgulho. Só durante algum tempo… Depois surgiram notícias em que os papéis se inverteram: alunos maltratavam e desrespeitavam os seus mestres, logo a seguir emerge uma onda de escárnio por parte dos governantes. Elias interroga-se sobre o seu papel no meio de tudo isto. A haver uma próxima terá de pensar muito bem nas consequências. É que, no seu subconsciente paira a recordação de um dia ter-se magoado de forma muito dolorosa numa pedra. Furioso, arremessou a pedra várias vezes contra o muro. Apesar da fúria com que a projetava, ela parecia rir-se da situação, permanecendo intacta. Preparava-se para reduzi-la a pó, à martelada, quando, o que parecia ser um anjo lhe perguntou: Porque destróis a pedra, se podes construir um castelo a partir dela? Sentia uma lógica irrefutável naquela interrogação. E a confirmá-la, um filósofo, cujo nome não se atrevia a pronunciar, escrevera de um modo soberbo: “ Quando se olha prolongadamente para o abismo, o abismo olha para ti.”
Mas… e se o abismo já lhe tiver piscado o olho?
(Suzete Fraga)