De que é feita a luz?
O dia
despertou misteriosamente, envolto num nevoeiro cerrado. Aquela camada densa
ofuscava a claridade matinal, sendo impossível adivinhar o tempo que faria
naquele sábado.
Meio
atordoada, agarrei-me à rotina do costume; duche, pequeno- almoço e os afazeres
domésticos. Enquanto isso a televisão pigarreava as desgraças habituais, ou era
a crise, ou um avião que caiu, um terramoto não sei onde… enfim, nada que
fizesse aquecer a alma depois de mais uma semana de trabalho igual a tantas
outras.
Os gestos
mecânicos do dia-a-dia tinham-me deixado num estado amnésico. Esquecera-me de
como era ficar parada a ver um pôr-do-sol. Já não prestava atenção ao chilrear
dos passarinhos mal despontava a alvorada. As quedas de água do rio que passava
ali perto, há muito que tinham deixado de transmitir tranquilidade, na verdade
acho que já nem as conseguia ouvir.
Farta de mim
mesma, peguei nas chaves do carro e saí. Não tinha nenhum destino traçado,
talvez nem saísse dali. Ficaria quieta a ouvir música. Ao fim de dez minutos, a
saltar de emissora em emissora decidi finalmente arrancar. Precisava de ver
gente, de sentir calor humano, de dar um abanão na minha vidinha rotineira.
O centro da
cidade pareceu-me uma boa opção, cheio de movimento, mil e uma maneiras de
passar o tempo e sensações novas para experimentar.
Nem cheguei
perto. Havia percorrido um ou dois quilómetros quando uma senhora idosa me
chamou a atenção. Estacionei um pouco mais à frente e pensei em algumas
palavras para meter conversa.
A senhora
estava ajoelhada, de olhos postos na imagem de São Cristóvão.
Uma vez ao pé
dela não consegui proferir uma única palavra. Ajoelhei-me também, como que
solidária com o sofrimento alheio e rezei por ela. Queria que as minhas orações
lhe atenuassem a dor.
Algum tempo
depois decidiu quebrar o silêncio e perguntou:
_Também perdeu
alguém?
_Oh, não!
Respondi. _Estava à procura de algo.
Fiquei a
pensar naquilo. Se tinha perdido alguém, porque vinha para ali, em vez de estar
junto do túmulo do seu ente querido?
O nevoeiro
teimava em não arredar pé e já estava a entranhar-se nos ossos. Sugeri, então,
que descansássemos um pouco no carro e depois poderia dar-lhe boleia até casa.
_Para casa
não, por favor! Cada canto, cada objecto, faz-me lembrar que o tempo se esgota
como a areia de uma ampulheta.
_Bem, se há
tempo, há esperança. Alguma coisa deve poder fazer!
Com a voz
trémula foi desabafando…
_Sabe, o meu
Simão sofreu um acidente de automóvel. Ficou em coma desde então e, amanhã, as
máquinas serão desligadas. Não sei o que fazer, uma mãe não está preparada para
aguentar tamanha dor. Queria poder trocar de lugar com ele.
_Compreendo o
seu desespero, ainda assim, acho que no seu lugar, manteria a esperança até ao
último minuto. E é isso mesmo que vai fazer! Vai para junto dele, segure-lhe a
mão e fale-lhe com o coração. Diga-lhe porque tem de voltar, o que ainda falta
fazerem juntos. Recorde-lhe os bons momentos que passaram, as dificuldades que
venceram, e sobretudo, o quanto ele é amado. Às vezes basta uma voz familiar,
um gesto, para que o milagre aconteça. Se não resultar, fique grata por cada
minuto da sua existência, por não ter ficado nada por dizer, por ter tido
oportunidade de se despedir...
Chegámos ao
hospital. À medida que se aproximava do quarto, as pernas ficavam mais bambas.
Podia ouvir o seu coração aflito, batendo descompassadamente.
Não sei como
arranjou forças para caminhar. Eu fiquei especada no corredor. O cheiro a
desinfectante e todo aquele silêncio mórbido deixaram-me paralisada.
Vivemos, fazemos
planos a longo prazo e não temos noção de como a vida é frágil. Num instante,
absorvidos pelo trabalho, no minuto seguinte, dependentes de máquinas para
respirar.
E se fosse eu,
estaria preparada para partir à pressa?
Teria uma
bagagem digna de se ver ou, tinha-me limitado a ver o tempo passar?
Iria lutar
como um touro, por mais um dia que fosse ou, deixar-me-ia levar sem dar luta?
Estaria
sozinha ou, haveria alguém a rezar por mim?
Seria
lembrada? De que modo iria ser recordada?
De repente, a
minha mente foi bombardeada com questões para as quais, eu não tinha resposta.
Respirava, é
certo, mas isso até uma máquina conseguia fazer! Qual era o meu papel no mundo,
teria nascido tão insignificante ao ponto de ser uma inútil?
Subitamente,
vejo um entra e sai de batas brancas e os olhos daquela mulher a jorrar água,
parecia as Cataratas do Nicarágua.
Foi o Simão.
Sentira o frio da medalha de São Cristóvão e encontrara o caminho de volta.
Aí respirei de
verdade, pensei estar a receber oxigénio pela primeira vez na vida.
Cá fora, o
nevoeiro dissipara-se para dar lugar a um lindo dia de sol, bem como a
escuridão que me envolvia.
Os
acontecimentos desse dia mudaram para sempre o rumo da minha vida. Ganhei uma
nova família e comecei a fazer voluntariado nos cuidados intensivos, juntamente
com a dona Aurora, a mãe do Simão. Há demasiadas pessoas à procura de uma luz
ao fundo do túnel; se estiverem acompanhadas, é bem mais fácil encontrá-la.
Os dias do
Simão são agora mais calmos. Trocou a advocacia pelo turismo rural. O negócio
prosperou bastante, graças aos cozinhados da dona Aurora e aos produtos
provenientes da quinta.
Porém, o
crescimento não se ficou só pelos negócios. Matilde está grávida de oito meses!
O jovem casal escolheu o nome de Cristóvão se for menino e Vitória, se for
menina.
Eu, como
madrinha, não poderia estar mais de acordo!
(Suzete Fraga)
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Tortura
silenciosa
Se
ela soubesse o que sabe hoje, não teria feito comentários infelizes sempre que
lia ou ouvia notícias sobre violência doméstica. Não teria apelidado as vítimas
de pobres de espírito. Não teria dito: “havia de ser comigo”. Não se atreveria
a achar que se apanhavam é porque gostavam; não tinham as luas todas, de
certeza.
Estava
a anos luz de poder imaginar o sofrimento a que essas pobres almas estão
sujeitas. Era impensável que um ser humano pudesse ser maltratado, humilhado,
reduzido a nada e, ainda assim, ter a capacidade de desculpar, de minimizar os
danos, de perdoar vezes sem conta.
Se
soubesse... Esta história seria diferente.
Era
uma manhã como outra qualquer: a caminho da clínica veterinária, música aos
berros e dedos a tamborilar no volante, seguindo o ritmo de Madness_ o melhor
tema dos Muse, na sua opinião.O telemóvel toca; àquela hora só podia ser uma
urgência, portanto: toca a atender. O Bambino do Sr. Tomás voltou a saltar a vedação
de arame farpado, o maroto. De tão concentrada que estava nem se apercebeu da
Operação Stop, junto à rotunda. Institivamente, atira o telemóvel para os
bancos de trás e claro, semelhante proeza só podia resultar numa repreensão
daquelas; nem o diabo se lembraria de tanto!
Mas o que é que importa um rombo na carteira
quando se tem à frente um metro e oitenta de farda, olhos cor de azeitona e
bronze a fugir para o chocolate?
Sentia
as asas de mil borboletas a roçar no estômago. A sua intuição dizia-lhe que o
sentimento era recíproco afinal, mostrou particular interesse pelos dados
pessoais e combinou uma hora para passar na esquadra, mais tarde.
Mal
podia esperar...
Uma
vez na clínica, esclarece o motivo do atraso à sua sócia e amiga confidente.
_
Vamos que te sai um tarado na rifa?_ alertou-a. Um com stress pós traumático ou
com a mania da força bruta... tu vê lá!
Não.
Não estava a ouvir; o homem podia ser o Bin Laden em pessoa que não faria a
menor importância. O amor tem destas coisas.
À
hora marcada comparece: toda aperaltada, sem a bata branca que habitualmente
envergava durante as horas de expediente. Tanto aprumo e tantas expectativas e
o que vê? Um velho, gordo e barrigudo, ainda por cima, mal humorado.
_
Bolas, cento e vinte euros para o lixo e nem tenho direito a brinde!
Frustada
e decidida a esquecer o assunto, lá regressou ao trabalho... Se calhar é uma
nova táctica da PSP: contratam sósias do Brad Pitt e do George Clooney para as
multas não serem tão dolorosas, à primeira vista.
Dias
depois...
Domingo:
às dez e meia toca o telemóvel do trabalho, ninguém merece! De todos os
inconvenientes que a profissão acarreta, este era o pior: disponibilidade
total, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas. Passou na clínica, levou
alguns fármacos para intoxicações alimentares, dado que os sintomas indicavam
uma possível gastroenterite. Chegou ao local, seguindo o GPS, já que ela tinha
um péssimo sentido de orientação. Enquanto aguardava que lhe viessem abrir a
porta, calçou as galochas e prendeu o cabelo com um elástico; uma perfeita
totó! Sim, deve ser essa a palavra certa... O “garanhão” que a deixou pendurada
na esquadra estava ali; lindo de morrer, mesmo à civil e ela... de galochas!
Esforçando-se
por manter uma postura profissional perguntou pelo paciente. Não podia ser
aquele labrador frenético, sempre aos pulos e de cauda a abanar de
contentamento.
_
Na verdade, parece que melhorou bastante entretanto mas, já que cá está, pode
fazer-lhe um check-up, por via das dúvidas.
O
falso doente cooperou muito bem com a doutora, menos cooperante estava o Átila,
um dobermann, a espumar pela boca e a exibir a sua dentição assassina... “ Não
há cães maus, maus são os donos. Não... há cães maus, os donos é que não”.
Fogo, este homem tolda-me o discernimento!_ pensava ela. Felizmente, a consulta
limitava-se ao Pombo (o labrador) este sim: dócil e brincalhão. Com um estalar
de dedos, o Átila ficou estático, não voltou a mexer um músculo, sequer. Estava
a perturbar o grande momento_ o verdadeiro motivo da chamada_ a declaração do
ano! Seguiram-se mensagens, flores, jantares, mais encontros, cama, mais
mensagens (não necessariamente por essa ordem). Meia dúzia de meses depois já dividia
as gavetas, bem como a casa de banho: duas escovas para os dentes, máquina e
creme de barbear, aftershave, etc.
Viveram
um conto de fadas até o Sr. Agente fazer questão de oficializar a união, na
igreja, cinco anos mais tarde. Selaram a união com o anel, jurando diante de
Deus, amor e fidelidade até que a morte os separasse.Um dia de sonho, o sonho
de qualquer mulher; precisamente o dia em que se vislumbra um futuro
cor-de-rosa, sem a mais pequena nódoa de tristeza. O plano maquiavélico, delineado
ao mais ínfimo pormenor, estava em marcha; anel no dedo: propriedade minha. Ponho
e disponho como bem entender, literalmente.
Subtil,
como uma raposa começa a arquitetar o afastamento da vida profissional e social
da mulher. Argumentos bem estruturados tipo: “Não precisas de trabalhar, ganho
o suficiente para nos sustentar” ou “Esquece os jantares de mulheres, quero-te
só para mim”.
Quando se apercebe é tarde demais,
está numa jaula e o pior… é que permitiu que a enjaulassem; barra por barra, todas
elas com permissão.
Não sabia muito bem quando fora a
última vez que teve contacto com o exterior. Ocasionalmente, acompanhava o
marido, ele gostava de exibir o seu troféu amestrado. Fora essas saídas
precárias, não havia nada digno de registo, até as compras eram efetuadas sob a
vigilância apertada do “paizinho”.
Um
dia, enquanto ele estava no duche, ligou o computador e distraiu-se a pesquisar
um tratamento inovador para a deuteranopia_ uma anomalia da visão que interfere
com a cor verde; licença sem vencimento não significava propriamente estagnação
de conhecimentos.
_
Demoras? _ Ouviu-o a perguntar.
_
Não, mais cinco minutos.
Quais
cinco minutos quais quê? Irrompeu escritório dentro, bateu-lhe com a cabeça no
computador. De seguida arrastou-a pelos cabelos até ao quarto, usou-a como quem
usa um boneco de vodu e por tê-lo feito esperar desligou o aquecimento e
algemou-a ao radiador, a noite inteira. Não lhe adiantaram de nada as lágrimas,
as súplicas ou os pedidos de desculpa, quando recuperou os sentidos já o sol ia
alto. O covarde retirou-lhe as algemas e disse:
_Não
saias de casa.
A
primeira reação, mal ouviu o carro a arrancar foi juntar algumas roupas e
pôr-se a milhas. Porém, o ordinário antecipara-lhe os movimentos: as chaves do
Audi tinham desaparecido, o telemóvel estava submerso em água dentro de um copo,
o computador destruído. Deixou ao menos o comando do portão. Bonito… até esse
pormenor foi pensado de modo a tornar a situação mais cómica, para ele. Cá
fora, o Átila vigiava obsessivamente a porta _deve tê-lo ido buscar ainda de
noite. Jamais passaria por ele e, gritar no meio do nada, também não serviria
de muito. Durante dois dias, não entrou em casa. Passava por lá, sim, para
alimentar a sua máquina assassina, altamente treinada, por sinal. Ignorou o
bife com tranquilizante. Uma tentativa frustrada para o distrair, nem sequer
pestanejou, o raio do cão.
Ao terceiro dia, sempre se dignou a
dar um ar de sua graça, embriagado de tal maneira que nem se incomodara a
limpar as marcas de batom da cara…
Só queria acordar daquele pesadelo.
Completamente perdida, não sabia o que pensar. Se calhar a culpa era dela;
devia estar mais atenta às necessidades do marido, mimá-lo mais, não o
provocar…
E tentava com todas as forças:
amava-o por demais e quando se ama vence-se qualquer obstáculo, achava ela.
A tristeza provocava-lhe um aperto
no peito e ia aumentando, obstruindo a garganta. Ocasionalmente conseguia
ingerir uns goles de água_ uma exigência do organismo para evitar falência. Só
queria deixar-se ir, que a dor acabasse de vez.
_Podíamos ir à missa… que dizes? _
Sugeriu-lhe a medo.
Precisava de fazer as pazes com
Deus, buscar consolo, ajuda Divina… qualquer coisa.
_Vai tu, mas não demores! Vós, mulheres,
deveis pensar que tendes o rei na barriga. Vá, vai… desaparece!_ disse-lhe ele
em tom áspero.
Na igreja só repetia: Deus acaba com
o meu tormento. Deus acaba com o meu tormento… Não ouviu as leituras, nem o
sermão do padre. Soube que a missa estava acabada quando os bancos foram
ficando vazios novamente. No banco de trás, uma amiga confirmava as suas
suspeitas; o vestuário não cobrira todas as nódoas negras e a porta do
frigorífico era incapaz de fazer tal coisa. Sem qualquer aviso dirigiu-se à
esquadra para apresentar a sua denúncia. Violência doméstica é um crime
público. Qualquer cidadão pode e deve denunciar estas situações. Quem tomou
nota da ocorrência deu “andamento ao processo” com um telefonema de aviso para
o colega Silva. Num momento, estava prestes a servir a vitela assada, no
momento seguinte encontra-se no hospital com aquele ser desprezível a
beijar-lhe a mão, a que não estava engessada, lavado em lágrimas de crocodilo.
Cada lágrima que lhe caía no corpo era como ácido a corromper-lhe a carne. E a
conversa de chacha provocava-lhe náuseas. Não sabia como viver sem ela? Pois,
em quem iria bater durante o internamento hospitalar? Sim, maxilar, punho e
duas costelas fraturadas requerem internamento hospitalar. Que chatice!
Porém, no meio de tanto azar… uma
nesga de sorte. Durante uns tempos estaria segura; rodeada de médicos e
enfermeiras, o pior que podia acontecer era uma reação alérgica provocada pelos
inúmeros ramos de flores_ tanta flor, só nos cemitérios em dia de Finados.
Foram nove semanas repletas de promessas, desculpas e mais promessas. Caía tudo
em saco roto até que houve uma (a mais grave de todas) que fez uma faísca tão
grande, mas tão grande, que reanimou os poucos neurónios sobreviventes: “ Vou
fazer-te tão feliz quando me deres um filho!” _ Prometeu com safadeza.
_ Um FILHO?! Não, não estás a entender. Eu vou contar-te
um segredo; não sei se já ouviste falar em pentobarbital… pois bem, certo dia
fui chamada para ajudar um cavalo, estava ferido de morte. O dono, desolado,
implorou que lhe acabasse com o sofrimento. Foi o que fiz. A seringa ainda ia a
meio e já não havia ritmo cardíaco. Potente, não é? Agora, mas agorinha mesmo,
vais à MINHA CASA e sublinho MINHA CASA e retiras todos os teus pertences.
Levas o Átila (o desgraçado não tem culpa do dono que tem) mas leva-o. Limpa
muito bem o teu ADN nojento das minhas coisas e desaparece. Leva também a
argola que me enfiaste no dedo, os álbuns do casamento… tudo! Ah, deves-me um
computador e um telemóvel. Não te preocupes com as chaves do Audi, eu mando
fazer outras, tanto para o carro como para casa; quero fechaduras à prova de
vermes. Diz-me, percebeste tudo? Ou precisas de um desenho com a letra P?
Podia ter acabado
de assinar a sua sentença de morte, mas não importava. Soube tão bem! Soube
mesmo bem!
Felizmente, os ratos sabem quando devem
abandonar o navio. Foi a última vez que o viu. Eclipsou-se no ar, ele e os dois
camaradas que “tomaram nota da ocorrência”.
Ela, sem nome, (podia ser: Marta, Maria, Joana,
Albertina, Bárbara…) era apenas um número, mais um, que jamais voltaria a ter
uma vida normal.
O cabelo passou a
ser curto, cinco centímetros, no máximo. Dormir? Só com uma almofada por cima
da cabeça, a protegê-la. Telemóveis? Nem que a casa estivesse a arder voltaria
a atender um, ao volante.
Príncipes encantados?
Isso… Isso são histórias da Carochinha.
(Suzete Fraga)